quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Austrália sem photoshop

 Sydney /2010

A Austrália não era a minha primeira opção, era a mais viável. Eu queria voltar a estudar e fazer um curso diferente no meu segmento profissional. Queria mudar a minha realidade visto que o pouco pra mim não era mais melhor que nada. Queria mudar de cenário. Queria me desafiar.

Quando não se tem muitas alternativas, não adianta ficar planejando. Você vai com o que tem e paga pra ver no que vai dar. E então nesse ano eu fui, com o foco de um curso a fazer, a necessidade de me expor e 1500 dólares no bolso. Sei lá. Pra mim, cercar-se de todos os lados para que o imprevisto não te belisque é viver em casa de teto de vidro. E justamente por dar valor a cada tostão que eu consegui juntar, eu passei por situações que a agência não te ensina. Aliás, é muito bonita a Austrália que eles pintam e vendem - é uma Austrália pra quem tem dinheiro - o que não era o meu caso. 


A minha primeira prova de fogo  foi logo no segundo mês. Depois de morar em homestay, eu fui procurar uma moradia onde é mais comum de se encontrar: em sites, nas escolas ou pela rua mesmo, onde as pessoas colocam anúncios nos postes. Achei uma muito bacana, pouca gente, no norte, perto da escola e longe da aglomeração do povo no centro. O centro é onde se encontram a maioria das escolas, por consequência há maior procura e por conseguinte, maior o preço e gente nas casas. Intercâmbio é um negócio, e você é um produto.  


Quando você aluga um quarto, você tem que pagar o bond que é como se fosse um cheque calção para futuros danos no imóvel. Normalmente o bond é mais um mês de aluguel pago - o que eu não podia arcar- e nessa casa o bond era de somente duas semanas. A dona era uma senhora inglesa, aparentemente boazinha, compreensiva e as três pessoas que lá moravam super receptivas, sendo que duas delas, uma turca e um indiano mudaram a minha vida e eram tudo o que eu precisava na minha jornada. Eu tinha certeza que tinha tirado a sorte grande, até que um mês depois, começaram a aparecer valores a se pagar em um pedaço de papel aparentemente sem explicações. Estudante não questiona e todos lá simplesmente pagavam, mas eu não. Meu dinheiro era contado, queria saber exatamente o que eu tinha que pagar, como eram feitas as divisões e onde estavam as contas originais. A resposta que eu tive era de que as contas eram "pessoais" e não seriam mostradas. Ora, se eram pessoais porque eu tinha que pagar? Deixei a senhora ciente de que ela não conseguiria me explorar e que eu ficaria de olho nela. Obviamente ganhei uma inimiga que não via a hora de me enxotar de lá.


Nesse meio tempo, eu já estava desesperada por um trabalho visto que o meu dinheiro não daria para mais muito tempo. Sim, não é tão fácil arrumar um trabalho lá como dizem. Você tem que correr muito atrás como eu corri. Mas o tempo de visto, as horas disponíveis que te sobram para trabalhar contam muito mais do que a sua disposição. O inglês pra mim não era uma preocupação, não fui lá pra isso, o que eu queria era fazer meu curso. Um curso que não dava visto então para poder realizá-lo eu teria que continuar estudando


A agência disse pra mim que para se arrumar um emprego na Austrália, você tem que bater de porta em porta - eu fiz isso - sem sucesso. Não recebi um retorno sequer. Procurei a agência. Mas quando se está lá meu bem, esqueça. Nem uma ligação de boas vindas eu recebi. Eles não se importam nem um pouco com a sua situação. Pedi que me mandassem vagas pelo email. eles mandavam. vagas que não eram viáveis para estudantes. Mas os convitinhos pra festa chegavam a toda hora! Quando perdi a paciência e questonei, recebi a resposta de que para se conseguir um emprego, têm de ser indicado - Isso não te falam no tour explicativo não é?


Pois bem, fui pra casa, sentei na cama e fiz as contas. Tinha 510 dolares, 5 kilos a menos e sem saber pra onde correr. O indiano que morava comigo percebeu a situação e ele, que até então nunca tinha conversado comigo direito, passou a colocar todos os dias vagas de emprego embaixo da minha porta. Usar o desconto dele de funcionário no supermercado e oferecer um ombro amigo. A melhor pessoa que conheci. Só que o stress era grande e eu adoeci. Aí veio o segundo ato da prova de fogo! O maravilhoso plano de saúde ISIS! aquele que te empurram a todo custo! Sim porque me foi dito que para usá-lo, bastaria ligar na central de atendimento, informar o hospital que eu estaria indo para que eles repassasem ao hospital que eu não pagaria a consulta - sim porque lá você paga e depois pede o reembolso quando usa o plano obrigatório de estudante - mas não com o ISIS que é pré-pago. O sinhôzinho Malta dos planos! Só que claro, não é bem por aí. Você liga, eles querem saber qual é o problema, tentam te fazer tomar alguma medicação a todo custo, dizem que vão ver qual centro médico está disponível para te atender e que retornam a ligação. Eu recebi a ligação quatro horas mais tarde, com uma consulta marcada para dali três horas. Isso por que era emergencial. 


Nesse mesmo dia, eu fui indicada pela minha doce roomate turca a uma vaga de cleaner num emprego de uma amiga dela. Fiquei feliz da vida! dinheiro era tudo o que eu precisava. O emprego era meio longe e eu gastaria bastante com transporte, mas tava valendo. Lá se paga por trecho andado. Existem diferentes bilhetes para se adquirir. No meu caso como ia trabalhar todo dia, comprei um que se chama-se travel ten. Você pode fazer 10 viagens e sai mais barato do que se comprar individualmente. E trabalhar eu fui....e a terceira prova de fogo enfrentei. 


Era uma empresa de limpeza terceirizada e o dono era um chileno. Me pagariam 15 dolares a hora por 3 horas de trabalho. A primeira vez que fui lá descobri que trabalharia sozinha. Era uma sede de uma ONG que fazia comida para idosos. Tinha um pequeno escritório, dois banheiros, uma cozinha coletiva para funcionários e uma cozinha industrial. Logo percebi que limpar tudo aquilo em 3 horas seria complicado. Eles pagavam por 3 horas, independente do tempo que se levaria para limpar. Depois de duas semanas trabalhando, não recebi o meu salário. Lá o salário é pago semanalmente ou quinzenalmente. Sabendo disso questionei o gerente porque não sabia quem era o dono, que aliás nunca cheguei a conhecer. Se você não correr atrás do seu, ninguem vai correr por você. Me pagaram depois de muita briga e ainda me pagaram a menos. Eu explodi. Ameaçei o chileno e consegui parte do meu dinheiro depois de muita discussão. 


Nesse momento sabia que eu estava fudida. Tinha gasto muito dinheiro com transporte e ainda tinha levado calote. Tava com 50 dolares no banco. Fui morar com um amigo meu de favor para pelo menos eu terminar meu curso de inglês, do qual eu nem precisava. Tentava achar uma solução, nada me vinha. Não ia ter dinheiro pra renovar o visto e muito menos fazer meu curso extracurricular que era o motivo da minha ida. Pra fazer um, eu tinha que pagar dois para poder continuar no país. Me lembro que uma semana antes da minha data de volta, eu encontrei uma pessoa que me propôs o seguinte - Trabalhar para ele e em troca ele pagaria meu curso, a renovação do visto e a multa da passagem. Ele é brasileiro, não fala inglês e queria que eu o ajudasse. Ele trabalha com acomodação e eu iria morar nos apartamentos que ele tinha, no centro. Em troca do aluguel que eu não podia pagar, eu faria a faxinas nos apartamentos. 


Pensei na proposta, repensei. Cheguei a conclusão  de que nem tudo é colorido. Ele faz esse esquema com muito brasileiro, a maioria acaba acomodada na situação e não acha mais saída. Passa a estada toda dependendo dele. Ele também era meio enrolado. Foi aí que eu pensei:  tá, ele paga minha renovação, mas como vou juntar dinheiro pra fazer meu curso? teria que trabalhar pra ele e pra mim também. Ficar na camaradagem não rola. Mas como a esperta que sou, questionei qual seria o valor do meu trabalho, já que o curso tem o valor definido e eu  precisaria calcular em quanto tempo eu pagaria o curso, a renovação e a multa. Ele não esperava por essa. Calculei e decidi que só trabalharia pra ele por três meses. Era tempo suficiente para eu pagar em trabalho o que ele desembolsou. Os outros três meses do curso, eu pagaria com o meu dinheiro. 


Nesse meio tempo uma amiga me repassou o trabalho dela. Limpar banheiro. Eu aceitei. Estudava dois dias, trabalhava pra ele até de tarde e de noite na faxina pra eu juntar dinheiro. O pior não era isso, era o cortiço onde eu morava. Somente brasileiros e da pior espécie. Cheguei a dividir um apartamento com 12 pessoas, sendo que no quarto onde deveriam ter somente mulheres, tinha um homem. O povo só fumava, cheirava e aprontava. Muitos brasileiros deveriam ler no dicionário o real significado da palavra intercâmbio. Vão pra lá com a desculpa de estudar inglês,  só aprontam, fingem pra família que estão estudando, usam o dinheiro do pai e da mãe, não se misturam, queimam o filme que já é chamuscado e ainda voltam fluentes em português. Não conseguia dormir, simplesmente não queria ficar ali mas não tinha outra opção. Foram três meses de um verdadeiro inferno que chegou no ápice quando eu entrei no quarto e dei de cara com a indivídua transando com o namorado num quarto coletivo. Eu simplesmente descreditei na cara de pau. Naquele dia, eu peguei minhas coisas e fui pra casa do meu amigo sem saber o que fazer. E foi aí que uma amiga me chamou pra dividir o quarto com ela. Eu fui. Estava novamente desempregada, já que a faxina acabou com a minha saúde. Eu tenho uma lesão séria na coluna cervical e ela não aguentou, tive que largar.


Depois de dois meses desempregada tendo que  dar calote em trem, ônibus e pedir comida pros outros, consegui um emprego que mudou a minha situação. Era um emprego temporário por causa da alta temporada, mas era o que eu precisava. Após nove meses de sufoco finalmente eu tinha conseguido respirar aliviada. Paguei meu ultimo trimestre do curso e juntei um bom dinheiro. Trabalhava muito mais do que a lei permitia, mas isso não era problema pra mim. Se eles não se importavam eu é que não ia ligar. Esse caminho me fez encontrar mais uma pessoa ponta firme. Guerreira, batalhadora.


O ano virou e eu fiquei sem emprego novamente. A ultima data do curso que eu queria fazer era em abril e eu ainda não tinha todo o dinheiro. É nessas horas que você vê quem realmente está do seu lado. Por mais uma indicação, consegui um emprego em uma loja de departamentos. E depois precisando de mais dinheiro, consegui outro e aí finalmente eu pude respirar aliviada. Tinha dois empregos. Consegui o dinheiro a tempo e finalmente consegui fazer a minha inscrição no curso que eu tanto desejava. Não tenho palavras para explicar a sensação. Pra mim aquilo valia mais que ouro. Não há racionalidade que explique o que foi concretizar aquilo depois de tantos buracos pelo caminho. Depois de tanto sufoco, eu podia gritar: EU CONSEGUI!!! Eu era a única latina no curso e me dei conta do que eu era capaz. Consegui provar pra mim mesma  que não há barreiras suficientes que impeçam  alguém de realizar algo quando realmente se quer alguma coisa. A minha insegurança em mim mesma se foi.


E faltando um mês pra eu ir embora depois de tudo o que passei, depois de todo esse enredo que eu vivenciei,  doente, cheia de cabelos brancos e 10 kilos mais magra, eu senti vontade de ficar. Não fiquei. Voltei. Voltei outra pessoa, cauterizada por dentro e leve por fora. 


Muita gente que está indo não passará por isso, mas nenhum planejamento te impede de sair ileso das porradas que a vida pode te dar, das pessoas sacanas que podem aparecer. E é por isso que eu escrevo. Para dar a real. Para falar de uma Austrália que a agência dificilmente te apresentará. Porque pra mim, ela me modificou ao ponto de eu entender o que devo fazer a seguir. E eu vou fazer. E você deve estar pensando: depois dessa ela não quer ver a Austrália nem pintada de ouro né? - eu te respondo: que nada! tô voltando em dez dias....com um objetivo diferente, com um estímulo diferente. É pagar pra ver.



"Sucesso é uma questão de não desistir, e fracasso é uma questão de desistir cedo demais" #Walter Burke

Para os que acham que conseguir algo grandioso é fácil aqui vai uma autobiografia que estou lendo:

#Walt Disney - o triunfo da imaginação americana.

12 comentários:

  1. Ótima experiência de vida, e coragem de partilhar sem photoshop...rsss :)))
    Além da ótima sensação de conseguir as coisas por si só, bom saber que ainda podemos encontrar pessoas que de onde menos esperamos nos estendem a mão...

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  2. obrigada pelas mensagens sempre carinhosas william, e é nóis heim! rsrsrsrsrs

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  3. "Nenhum planejamento te impede de sair ileso das porradas que a vida pode te dar..."

    Sensacional o seu relato.

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  4. Que história Mari. Sério me deu uma coisa lendo e ainda pensando eu realmente quero ir depois de ler isso? ahuahaua quero sim, mesmo sabendo disso tudo e acima de tudo pela sua coragem de votlar lá significa que valeu a pena,

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  5. Olá meu amor...parabéns pelo seu texto, muito bem escrito, mas gosto mais de Peter Pan! a terra do nunca, como já conversamos e concordamos com muitas coisas...até tofu eu estou comendo, essa é umas das muitas histórias daqui, me marcou essa frase "Intercâmbio é um negócio, e você é um produto. " ninguém acredita quando falo, não passei por essas situações, mas a agencia nem sabia que eu tinha chego em Perth, nunca me ligaram respondendo uma solicitação, mas recebo sempre os convites pra balada, o seguro que paga tudo, não paga, acreditem! Mas agora voce vem escolada, sabe tudo, manda ver... já escolheu a data do jantar? beijos!

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  6. só não entendo muito sua indignação!!! Serio mesmo. Você vai a um país estrangeiro com poucas condições financeiras e acha que tudo vai dar certo! A culpada por esses episódios foi unicamente você, sinto muito em lhe dizer. Mesmo sendo metódico ainda existe grandes chances de haver problemas, imagina sem uma previa preparação!!

    Não fique chateada, o contexto que você pintou é óbvio!

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    1. Não é tão óbvio assim. O "negócio" intercâmbio é vendido de maneira diferente aqui no Brasil.

      Irei com minha noiva em dezembro, com recursos financeiros para 3 meses. Desde o começo ralaremos MUITO e temos consciência disso. O complicado é que muitos não têm ou vão pra lá sem traçar um objetivo/meta, mas como a Mariana mesmo disse: "Nenhum planejamento te impede de sair ileso das porradas que a vida pode te dar"

      Abraço!

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    2. mas tudo deu certo! cada um faz do jeito que quer fazer. sim foi uma escolha minha ir dessa maneira e eu tenho muito orgulho disso. o que eu quero dizer é que a agência não explica muita coisa que quando você se depara, fica sem saber o que fazer. E eles por terem uma parcela de lucro no seu processo têm obrigações a cumprir sim. Só isso. quis expor situações que mesmo se você tiver condição, o dinheiro não vai te ajudar. questões de proteção ao estudante contra pessoas que querem levar vantagem, como não só aconteceu comigo, mas com outras pessoas. como o bond por exemplo que deve ser depositado numa conta do governo especifica pra esse fim. ninguem sabe disso e a maioria dos landlords ficam com o dinheiro. depois fica sem garantia nenhuma de devolução. eu vi isso e coisa muito pior, isso foi so um resumo. um abraço à todos!

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  7. Em relação as agências... Concordo plenamente com a indiferença, mas não são todas!!

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  8. pow você é muito guerreira,meu nome é Luana e tenho 16 anos e pretendo ir para Austrália,realmente teu blog me ajudou muito achava que tudo era flores,mais mesmo assim não vou desistir dos meus sonhos,vou me espelhar em você e vou vencer todas as barreiras,parabéns te desejo todo o sucesso do mundo flor :*

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  9. Sensacional essa sua experiência....comecei a ler o blog hoje, e ainda nao consegui parar! Parabéns vc é muito guerreira!
    Essa sua experiência nos faz sair do fantástico mundo da Austrália vendido pelas agências e ver q a realidade é muuuuito diferente!
    Obrigada por nos deixar sempre com os pés no chão!
    Estou indo em Set/13 sem condições privilegiadas como muitos que vão...é pagar para ver!

    beijo
    Parabéns

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